24.7.17

Culpabilização nacional: um populismo



«Agora que vai esfriando uma parte da demagogia que se alimentou do dramático incêndio em Pedrógão Grande e do ridículo roubo de armas numa unidade militar, talvez se justifique um olhar introspetivo sobre a forma como a nossa sociedade transforma dramas e problemas num espetáculo de que muitos se aproveitam inescrupulosamente. Tudo serve para criar um reality show, inclusive para retirar dividendos políticos e para aparecer teatralmente nas imagens da televisão com ares de sofrida piedade, à custa da dor de outros. Há algo estruturalmente errado e insensível no nosso país.

Os portugueses adoram os dramas e as crises em que possam treinar essa sublime capacidade que, em esquizofrenia coletiva, consiste em desesperadamente culpabilizar alguém, torturar alguém no pelourinho público sob os holofotes da comunicação social, exigir responsabilidades (naturalmente, “até às últimas consequências”), destruir imagens e respeitabilidades, linchar, assassinar o carácter de alguém em público, exigir demissões, julgar na rua e condenar, num país que, desta forma, não é um Estado de Direito. (…)

Perde-se a serenidade e mesmo a sanidade. Políticos e comunicação social pressentem uma imediata predisposição popular para uma nova telenovela dramática que prenderá as atenções do país durante algum tempo, e imediatamente cavalgam a corrente onda de demagogia fácil. É um “Populismo à Portuguesa”. Mas é também uma patologia que seria mais adequada a um qualquer país culturalmente atrasado. (…)

Aparecer nos locais dos dramas facilmente rende visibilidade nas televisões. Toda esta coreografia de vaidades, interesses políticos e interesses mediáticos é, afinal, parcialmente assente na indireta exploração da dor e dos dramas reais de outros. Para muitos, este espetáculo reality show configura um pequeno período de êxtase de visibilidade pública. Resta saber se tudo isto, à custa de sofrimento de alguns, é moral. (…)

Esse facto concorre para se compreender como o nosso país é tão facilmente submergido por ondas de demagogia que pretendem ganhar dinheiro e lucros políticos com dramas, erros e desastres, cavalgando o que todos eles pressentem estar a mobilizar popularmente. Por isso, por definição, esta é uma demagogia populista.

Em momentos de delírio demagogo, culpabilizador e inquisitorial, torna-se perigoso cultivar a lucidez e a independência de espírito e de análise. Mas nenhuma sociedade é inteligente, civilizada e arrojada quando segrega o medo de se manter a lucidez em lugar da fácil demagogia. (…)

Um último comentário sobre a primitiva crença nacional que consiste em acreditar na vantagem de “ondas de demissões”. Só quem nunca liderou, e não sabe liderar, não compreende que, depois de um grande erro cometido, provavelmente a pessoa mais preparada para evitar esse erro no futuro é quem o cometeu, se tiver tido a inteligência e a humildade de reconhecer e aprender com o erro. E no que refere ao conceito duvidoso (mas mediático) de “retirar consequências políticas” (isto é, demissões teatrais que o país do reality show adora), imagino já que, se o superior de alguém que errou se demitir, subsequentemente o mesmo deverão fazer o superior daquele, o ministro, depois o primeiro-ministro e o Presidente da República que os empossou ou os manteve em funções. Demissões em cascata, “retirando consequências políticas”. Seria uma irracionalidade (ou, quem sabe, uma singular oportunidade para reinventar o país?).»

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