20.8.17

O meu padrinho mulato nasceu num 20 de Agosto


(Karel Pott ao meio, comigo ao colo)

Há uma meia dúzia de anos, uma troca de comentários num blogue, que já não existe, levou-me a revelações absolutamente inesperadas. Nasci e passei a infância em Lourenço Marques e os amigos, inseparáveis e quase únicos dos meus pais, eram Karel Pott e a mulher. Fui criada praticamente como irmã dos filhos deles.

De pai holandês e mãe negra, terá sido o primeiro mulato moçambicano a obter um diploma de curso superior, em Coimbra. Era advogado, com escritório num belíssimo prédio na Baixa de Maputo - o Prédio Pott -, hoje (ou pelo menos há uns anos) em ruínas e ocupado por marginais, objecto de justas exigências para ser recuperado. A tal ponto desfigurado que nem o reconheci quando voltei a Maputo e o procurei em vão.

Com orgulho póstumo, descobri então que Karel Pott teve um conjunto de interesses e actividades que eu ignorava totalmente. Por exemplo que foi um dos fundadores do jornal O Brado Africano e que, como presidente do Grémio Africano, protestou nos anos 30 porque «fechavam-se as escolas e dificultava-se o ingresso de alunos negros e mulatos nas existentes, jogando-os, se homens, na marginalidade, e, se mulheres, no "monturo ignóbil da prostituição". Falando com a experiência de quem havia representado – como atleta de corrida – Portugal nas Olimpíadas de Paris, em 1924 [à esquerda, na foto aqui ao lado], lamentava que, em Lourenço Marques, "terra mais de pretos portugueses que de brancos portugueses", fechava-se a porta aos primeiros…». Percebi também por que motivo a sua actividade como advogado nunca lhe foi facilitada...

Para a criança de menos de dez anos que era quando sai de Loureço Marques, ele foi apenas o padrinho extremamente carinhoso que vivia numa modesta moradia no Palmar, separada do areal por uma mísera estrada e umas urzes, onde eu passava quase sempre os fins-de-semana. Por vezes vinha visitá-lo a mãe que se recusava a dormir noutro sítio que não fosse uma simples esteira estendida no chão. Recordo-me também de os meus pais me explicarem que eles não iam connosco em férias à África do Sul porque o meu padrinho não seria bem tratado por ser mulato – é a minha primeira recordação de um pré-apartheid, que nunca esqueci porque me causou na altura a maior das perplexidades.

Poucas horas depois de escrever um texto semelhantes a este, aqui no blogue, recebi um mail de um sobrinho, apareceu-me um neto na Facebook, recebi muitas informações através de bloggers moçambicanos, descobri uma referência de José Craveirinha («o Dr. Karel Pott, que foi uma referência muito forte na minha vida»). Mais tarde, e também no Facebook, retomei contacto, que ainda mantenho, com um dos seus filhos – o «Berty», com quem cresci durante os primeiros anos da minha vida.

Hoje, «regressei» à minha cidade das acácias vermelhas. 
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